Nenhum produto no carrinho.
Novos caminhos para urbanização na Cidade do Cabo após 21 anos de término do Apartheid
Texto de Alice Buratto
A África do Sul desde o princípio foi caracterizada como um território de conflitos e diferenças socioculturais. Antes da chegada dos brancos em terras africanas já se haviam conflitos entre os povos Zulu, Bantus e Xhosas. Contudo o aumento da comunidade holandesa da região da Cidade do Cabo no século XVIII acirrou esse conflito territorial, não sendo caracterizado como conflito apenas entre os negros mas incluindo também os ingleses e os holandeses que ali estavam. Após uma longa guerra travada entre o reino Zulu e os brancos no século XVIII levou a dominação de toda a área da atual África do Sul pelos ingleses, já havendo desde então a separação entre os territórios de diferentes domínios culturais.
Contudo, a crescente industrialização do pais e a necessidade de mão-de-obra acarretou a êxodo rural e a aglomeração populacional nas cidades, criando grandes aglomerados urbanos multiculturais e raciais. Em 1948 o regime de apartheid fora instaurado, na qual segregava e separa a população sul-africana. Além de uma politica de segregação racial e social o apartheid era também uma politica de separação territorial, a qual expulsava dos centros urbanos todos aqueles que não eram brancos. Com o apartheid vieram politicas urbanísticas e obras de infraestrutura, as quais destruíram ou deram novos usos aos bairros das comunidades asiáticas, colloured e negras, as áreas centrais eram fechadas para o uso dos brancos e em volta das cidades foram construídas precárias microcidades (townsship) gradeadas destinadas a cada grupo cultural.
Após 46 anos, com o fim do apartheid em 1994, a África do Sul começa abrir suas cidades e reconstruir sua historia, tendo como patrimônio cultural a historia de segregação ocorrida nos anos anteriores. Assim politicas afirmativas não eram apenas medidas sociais mas também medidas culturais e territoriais para afirmação da maioria da população do país que fora brutalmente denegrida.
OS MUSEUS EM MEMÓRIA AOS TEMPOS DE SEGREGAÇÃO:
Em memória aos heróis libertadores e à população segregada foram construídos inúmeros museus situados em diferentes cidades sul-africanas para contar a historia do apartheid. Na mesma lógica dos museus universais, mas em âmbito nacional, tais museus funcionam como referencia e conectores da historia sul-africana. Nas palavras de Luiz Antonio Bolcato Custódio: “a estas unidades [museus universais] caberia a qualificação de pólos, funcionando como elementos isolados de concentração e irradiação – como atratores – na linguagem do planejamento.”
Contudo, na África do Sul, diferentemente do que acontece com o Guggenheim, esses museus não são de uma mesma rede administradora, e sim são museus independentes que convergem em sua temática e intercambiam informações, como se fossem polos conectores da historia do apartheid. Tendo a Cidade do Cabo, como foco de análise, pode-se citar dois museus que integram esse rede de conexão. O primeiro deles, e o mais famoso da cidade é o museu da Robben Island.
Numa tendência de um novo urbanismo, não mais segregacional, mas um que inclua os espaços degradados, em que planejamento urbano utiliza-se da cultura e da criatividade para revitalizar espaços públicos, a antiga prisão localizada na ilha Robben Island, na qual foram clausurados os presos políticos da época do apartheid, foi tida como um artificio, uma oportunidade, uma potencialidade, através de sua revitalização e reciclagem, para a realização de um projeto que contribuísse para o desenvolvimento econômico, cultural e social da região. Junto a um projeto de revitalização maior da área portuária o qual será abordado mais para frente, a antiga prisão foi convertida em ponto turístico, no qual pode-se visitar a antiga cela de Nelson Mandela e vivenciar um pouco da experiência da prisão. A visita à ilha faz parte da visitação do museu de mesmo nome, o qual não apenas apresenta uma exposição sobre a prisão e a estada de Nelson Mandela na mesma, mas como também uma coleção sobre a historia do apartheid, conectando-se assim aos outros museus sul-africanos em memoria aos tempos de segregação.
Esse complexo da Robben Island, representa um dos principais pontos turísticos da Cidade do Cabo, onde o visitante pode percorrer o museu, realizar um passeio de barco até a ilha e visitar a antiga prisão, contudo ele é um ponto turística viabilizado pelo seu potencial cultural e histórico associado a um planejamento estratégico. Segundo Luis antonio Bolcato Custodio:
El Turismo cultural, entendido como actividad socio-económica basada en las distintas formas y manifestaciones culturales, es una de las principales alternativas contemporáneas para el desarrollo económico de comunidades y se presenta, cada vez más, como salida para la preservación del patrimonio y de la cultura. (CUSTODIO, sem data)
Outro museu importante a ser citado que pertence a essa rede de conexões é o District Six Museum, o qual conta a história do bairro Distrito 6. Bairro que além de ter sido palco da expulsão da comunidade islâmica não branca, dos indianos e da comunidade Xhosa, fora também destruído (havendo a demolição das casas dos comércios e dos parques, algo que ainda hoje é perceptível em sua vastidão) para dar espaço a uma nova obra urbanística da época do apartheid a qual nunca fora construída. Assim após o regime, em meio a tendência de um novo urbanismo de revitalizar espaços degradados e cicatrizar a imensa ferida do apartheid, o bairro passou por um processo de revitalização no qual um museu em sua memória, de seus moradores e aos anos de segregação fora construído. Contudo essa intervenção no bairro deu-se de forma muito singela, e a vastidão da demolição ainda perpetua, apesar do planejamento e investimento no local, o qual reconstituiu o mesmo como área residencial e agregou alguns estabelecimentos comerciais e culturais além do museu.
PLANEJAMENTO URBANO E A OPORTUNIDADE DA COPA DO MUNDO DE 2010:
Numa esfera de um novo planejamento urbano e de cidades criativas, a valorização do espaço público vem como meio de recuperar as identidades históricas e inserir a cidade num novo modelo de urbano, no qual os valores de sociabilidade, sustentabilidade e qualidade de vida são clamados. Em um mundo cada vez mais globalizado, e em uma cidade inserida em diferentes contextos culturais o espaço publico volta-se ao encontro de pessoas e culturas diversas. Sendo assim, dentro do tradicional tecido urbano das cidades, se há a necessidade de se criar novos lugares a partir de áreas esquecidas, abandonadas ou desvalorizadas como os centros históricos e as zonas portuárias (Dias, 2004).
É em meio dessa tônica que se apresenta o projeto Victoria & Alfred Waterfront Company, primeiramente apresentado em 1988 e revitalizado em ocasião da Copa do Mundo de 2010. A&V Waterfront, como é conhecido, constitui-se como um pólo de atividades mistas, sendo um centro comercial, cultural e residencial. Nele encontra-se condomínios residenciais e prédios hoteleiros, shoppings, restaurantes, museus apresentações de musicas, danças e artefatos de cultura nativa e também feiras gastronômicas. O Waterfront posiciona-se politicamente voltado ao turismo, ao sintetizar aquilo que se tem como característicos da cultura africana, tanto quanto dança, música, comida e artefato, e transformar isto em produto o qual é consumido pelo turista. Contudo é um centro não apenas para turistas em busca do imaginário do exótico africano como também para capetowne em busca do lazer e do consumo.
Dessa maneira, por todas as características que constitui o projeto do Waterfront, pode-se definir o mesmo como uma operação estrela, a qual, segundo Custódio, é:
Programas e projetos articulados, integrando interesses de diferentes naturezas, envolvendo parcerias públicas e privadas, vinculados por links em pólos, núcleos ou redes, em busca de objetivos comuns (…).Típicos empreendimentos consorciados que avaliam potencialidades, somam oportunidades e buscam implementar alternativas para a estruturação, recuperação ou desenvolvimento de cidades, setores, regiões ou países. (CUSTÓDIO, sem data)
Junto a isso, de acordo com Custódio, grandes eventos mundiais, como Olimpíadas e Copa do mundo, são vistos como oportunidade para o desenvolvimento de projetos de infraestrutura urbana:
Ejemplos más recientes demuestran que el planeamiento estratégico de estos emprendimientos, involucrando esfuerzos públicos y privados, pueden representar grandes aportes externos a las ciudades, con casos de mayor o menor suceso. Entre ellos están los parques olímpicos de Pequín y de Barcelona; las Expos de Lisboa, Sevilla y Shangai. Entre las Copas del mundo de fútbol, la de Berlín y de África del Sur, con significativas transformaciones en infraestructura, equipamientos urbanos o cohesión social. En todos estos casos, para la gestión y consecución de proyectos y obras fueron creadas asociaciones o corporaciones publico-privadas específicas. (CUSTÓDIO, sem data)
Não sendo diferente, com a realização da Copa do Mundo em 2010, o governo sul-africano investiu bastante em infraestrutura das cidades que sediaram e revitalizou zonas portuárias e de interesses turísticos como centros históricos. Na Cidade do Cabo, além da revitalização da marina já citada, foi construído o moderno estádio de Greenpoint, no qual, após a Copa, além de abrigar eventos esportivos ocorrem também programações culturais, como grandes concertos musicais. A construção do estádio acarretou um desenvolvimento cultural e econômico da área, o qual não durou apenas ao longo do evento mundial, transformando a região permanentemente.
ÁREAS DE ALTO INTERESSE CULTURAL:
Junto a isso, a Cidade do Cabo, constitui-se como um pólo do designer e de atividades culturais, concentrando-se inúmeros serviços e atores relacionados a essa área. Em uma conexão entre iniciativa privada e poder público, muitos festivais são realizados nas ruas da cidade, eventos os quais ativam os espaços públicos, tal como praças e ruas, tornando-os em espaços de convivência e sociabilidade. Além dos festivais, tal como o de Jazz e o de Arte Contemporânea, a Cidade do Cabo é famosa por seus mercados de ruas e feiras que unem gastronomia Gourmet, arte, artesanato e designer.
Tendo as cidades criativas em foco, um dos temas contemporâneos que tem a cultura como fator de desenvolvimento econômico são os distritos culturais. Grosso modo, falar de distrito cultural é pensar numa estruturação baseada na união entre cultura, economia e sociedade, a qual busca ressaltar as características artísticas, sociais e culturais de uma região especifica (Custódio, Lazzeretti).
Contudo, segundo a autora Luciana Lazzeretti, falar em distrito cultural esbarra em inúmeras definições, que ajudam a entender o modelo teórico do conceito como metodologia de análise cerca de patrimônio artístico, cultural e ambiental. (CAEH) A ideia de localidades, zonas ou/e aglomerações de recursos culturais se faz de grande valia (HCLS – sistema local de alto interesse cultural) o qual se caracteriza:
(…)por la presencia, dentro de su territorio, de una dotación amplia de un conjunto de recursos artísticos, naturales y culturales, que lo caracterizan como un lugar de alto interés cultural (HC Places, o lugares HC), y de una red de trabajo de actores económicos, no económicos e institucionales que llevan a cabo una serie de actividades relacionadas con la conserva- ción, mejora y dirección económica de estos recursos, y que representa en su totalidad una ciudad con un cluster de alto interés cultural (HC cluster)» (LAZZARETTI, 2003, p. 638).
Junto a esse conceito, para se pensar a formação de um distrito cultural, Lazzeretti utiliza do conceito de cluster (agrupamento, aglomeração) que seria uma aglomeração de atores, agentes sociais, ou recursos os quais ativam os processos para a formação de un distrito cultural, desenvolvendo uma melhora econômica dos recursos, ou seja uma rede de trabalho e de relações de atores e recursos, contudo nao havendo uma localizaçãoo territorial especifica, já a definição de lugares de alto nível cultural (HC) seriam aqueles lugares em que “un conjunto de actores económicos, no económicos e institucionales deciden utilizar algunos de los recursos idiosincrásicos compartidos con objeto de desarrollar un proyecto común, que es simultáneamente un proyecto económico y un proyecto de vida” (Lazzaretti, 2006).
Dessa maneira tendo essas definições esclarecidas, pode considerar que a Cidade do cabo tem dois distritos culturais muito bem definidos e localizados e alguns clusters de agentes e recursos. O primeiro distrito cultural da Cidade do Cabo é localizado no bairro de Woodstock, caracterizado pelo seu potencial artístico, vinculado a uma cultura de arte urbana, o bairro passou por um processo de recuperação e revitalização em uma iniciativa publico privada, a qual desenvolveu um processo de desenvolvimento econômico, cultural e social, articulando diversos grupos de agentes e recursos, transformando o bairro que já era potencialmente artístico (por apresentar aglomerações de artistas urbanos e intervenções) um pólo criativo da cidade: um distrito trendy hip, onde há um agrupamento de galerias de arte e de designer, ateliês de artistas, espaços de comercialização e para atender o crescente numero de visitantes um aumento do numero de cafés e restaurantes , os quais também proporcionam eventos culturais como performance. Junto a isso, o bairro abriga o mais antigo e famoso mercado de arte e gastronomia da cidade: The Old Biscuit Mill Market. este mercado é situado num complexo de casas antigas as quais foram restauradas para abrigar um conjunto de lojas tidas como alternativas, as quais comercializam das mais variadas coisas, desde objetos de decoração e peças de designer à móveis de demolição, fotografias, bijuterias vinhos entre outros. Além das lojas aos domingos acontecem uma feira gastronômica, banda ou DJ no jardim e stands de expositores com variados artigos. Esse mercado é frequentado por um publico variado, possibilitando uma mistura entre jovens, idosos, residentes e turistas, contudo sua capacidade conexão é limitada no quesito classe social e não consegue atingir um público de renda inferior, esbarrando num limitador histórico, econômico e social.
Sendo assim, apresenta-se o clusters de mercados populares de arte e gastronomia pelos quais a cidade é famosa. São entre eles mais de 10, os quais reúnem além dos produtores e fornecedores de matérias primas, artistas, artesões, designers, chefs em uma espécie de rede de mercados itinerantes pela cidade. Outro aglomeração que se tem como ícone da cidade é a do Jazz. Cluster que se reúne em torno de músicos, produtores, casas de shows, bares, restaurantes, instituições publicas de apoio a cultura em ocasião do festival anual de Jazz da cidade.
Além dos exemplos citados, não se pode esquecer do distrito do Gardens, o qual se assemelha muito a um distrito cultural. Bairro que tem suas atividade em torno a um parque o qual abriga um complexo com quatro museus e duas biblioteca, todos de iniciativa pública, em conjunto com algumas galerias de arte e artesanato. Pelo seu potencial cultural atrai grande numero de turistas, constituindo-se consequentemente no bairro uma estrutura hoteleira e de serviços para atender a demanda dos turistas.
CONCLUSÃO:
Apesar de, principalmente, após o fim do apartheid o governo da África do Sul, no caso estudado a Cidade do Cabo, investir em obras de planejamento urbano as quais envolvem empreendimentos tanto de iniciativas publico e privada ou em conjunto, que visam o desenvolvimento cultural, social, econômico e uma maior integração da cidade, a qual possa ser reabitada e revivida pela sua população inicial; a Cidade do Cabo ainda é uma cidade marcada pelas diferenças e segregação. Mesmo após as obras de planejamento urbano, as townsships ainda existem e são as principais regiões de moradia da população negra, a qual acessa a cidade principalmente para o trabalho e com muita dificuldade de transporte, já que o transporte público não atende a totalidade da cidade, nem muito menos chega à periferia.
A inclusão ainda é algo delicado e esbarra em um processo histórico de exclusão construídos ao longo de anos e acentuado com o regime do apartheid. Mesmo com o fim da ditadura segregacionista branca, a Cidade do Cabo ainda hoje, após 21, é uma cidade dividida, mantendo suas inúmeras townships ao seu redor da cidade, inclusão e exclusão vivem lado-a-lado, avanço, tecnologia e grandes obras arquitetônicas e culturais esbarram na falta de saneamento básico das áreas periféricas. Enquanto os incluídos, em sua maioria brancos, utilizam-se do avanços de infraestrutura, os quais amenizam a historia da segregação, a maioria da população ainda continua excluída; todos pertencentes a uma miscelânea cultural composta por brancos, negros, afrikaners, xhosas, zulus, indianos e mulçumanos, em meio à políticas afirmativas que causam reboliço em muitos da população.
Dessa forma, a Cidade do Cabo apesar de apresentar muitas características de uma cidade criativa, desenvolvendo projetos de desenvolvimento cultural, econômico e social, ela ainda apresenta um grande desafio, o qual pode ser entendido como uma meta sul-africana no geral: o fim da segregação racial e social. Fato que foi construído historicamente e qual poderá ser desconstruídos a partir de políticas afirmativas na esfera social, econômica, politica, cultural e territorial, e de uma união entre estado e iniciativa privada a qual pode priorizar aspectos de uma economia criativa e sustentável como perspectiva de desenvolvimento, assim como vem ocorrendo na cidade.
BIBLIOGRAFIA
FONSECA, Ana Carla. Industrias criativas e economia criativa como estratégia e desenvolvimento. In: Curso de pós-graduação em gestão de cidade e economia criativa.
CUSTUDIO, Luiz Antônio Bolcato. Cultura, criatividade e urbanismo. In: Curso de pós-graduação em gestão de cidade e economia criativa.
__. Operação Estrela. Sem informações.DIAS, Fabiano. O desafio do espaço público nas cidades do século XXI. Fúrum Mundial de Barcelona. Espanha. 2004
DISTRICT SIX MESEUN. Sem título. In. WWW.districtsixmuseun.com.za . acessado em 29/10/2014.
GLUCKMAN, Max. Análise de uma situação social na Zululândia moderna. In: FELDMAN-BIANCO, B. (Org.). Antropologia das Sociedades Contemporâneas: Métodos (segunda edição revisada e ampliada). 2o. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2009.
LAZZERETTI, Luciana. El distito cultural. In Mediterrâneo Econômico.