Arquitetura: arte para as massas

Por: Guilherme Winisk

Revista Bamboo 04.2015

 

Sabe-se que uma diferença crucial entre a arte da construção (arquitetura) e as artes visuais é o caráter essencialmente público da primeira. Pois diferentemente da pintura e da escultura, que surgiram historicamente associadas ao valor do culto, e não ao laico valor de exposição como atualmente, a arquitetura sempre esteve vinculada a uma necessidade prática: abrigar os homens. E mesmo quando as artes plásticas passaram a existir segundo um valor de exposição na sociedade, elas permaneceram, até muito recentemente, encerradas em coleções privadas, e portanto distantes de um acesso público mais efetivo. Já os edifícios ao contrário, materializam com sua exterioridade física a face pública do lugar no qual se implantam, que é muitas vezes urbano. E, nesse contexto, materializam também as funções sociais que representam: culto religioso, administração política, serviços médicos e educacionais, moradia etc. Quer dizer que, se a obra de arte está em princípio voltada para contemplação estética do individuo solitário, a arquitetura está voltada para a apreensão coletiva e distraída das massas através do uso.

 

Mas nada impede que o espaço da arquitetura, que por ser o ambiente da nossa vida nos propõe uma forma de apreensão distraída dada pelo uso rotineiro, seja percebido também por um ato de contemplação estética distanciada. A principal dificuldade filosófica para compreender o objeto da arquitetura resulta da confusão entre a mais corrente percepção cotidiana do edifício pelo usuário, e a mais especializada percepção estética pelo contemplador. Uma dicotomia na qual o vazio dos espaços interiores de um edifício aparece associado à utilidade, já que o adentramos e o percorremos, enquanto a presença superficial do volume, isto é, sua fachada, é normalmente objeto de contemplação estética distanciada.

É exatamente neste ponto que incide a poética dos trabalhos da escultora inglesa Rachel Whiteread, criando um curto-circuito. Trabalhando sobre a arquitetura de modo a negativá-la, Whiteread se apropria de edifícios em vias de demolição, preenchendo de matéria sólida (concreto ou gesso) seus espaços vazios, de modo a inverter a relação entre uso e contemplação. Solidificado, e portanto exteriorizado, o antigo espaço de vida daqueles lugares se torna impenetrável – daí a sua conotação tumular. A escultura, nesse caso, é a própria morte da arquitetura, que nela é velada silenciosamente.

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Com o desenvolvimento do capitalismo, contudo, a arte tende a deixar o espaço protegido daquela contemplação individualizada, e se voltar para as massas. Esse processo de “perda da aura” da obra de arte, tão bem descrito por Walter Benjamin, corresponde ao momento do surgimento das artes baseadas na reprodutibilidade técnica – fotografia e o cinema – , que coincide com a proliferação dos museus. Assim, a massa passa a ser a matriz de onde emanam as novas formas de percepção estética, que remodelam a acolhida da arte ao longo do século 20 em direção à percepção distraída, e não mais concentrada. Nesse processo, afirma Benjamin, a fonte de ensinamento vem sobretudo da arquitetura, arte que já lida desde a sua origem com essa forma coletiva de recepção estética: “desde o início, a arquitetura foi o protótipo de uma obra de arte cuja recepção se dá coletivamente, segundo o critério da dispersão. As leis de sua recepção são extremamente instrutivas”.

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Toda arte é, em última análise, uma forma de conhecimento do mundo na qual o homem elabora materialmente a consciência de sua condição mortal, visando construir uma vida melhor. O nascimento histórico da arte junto ao mito, nos rituais paleolíticos de sepultamento e nos monumentos funerários pré-urbanos, atesta essa condição primeira da arte: a formalização consciente das distinções entre vida e morte, identidade e alteridade, existência individual e coletiva; na criação de um duplo imagético que exorciza a ideia de aniquilamento, e mantém a identidade viva em meio à transformação. Essa representação mental da vida se instala em uma brecha simbólica entre o imaginário e o real, que constitui o humano como um ser que, ao organizar mentalmente a sua existência, libera ao mesmo tempo uma energia dionisíaca, na qual o devaneio onírico e a violência são a contrapartida da racionalização. Daí que a arte não se deixe nunca racionalizar completamente, sob pena de perder o seu sentido maior.

Como forma de apelo ao outro, a arte é um conhecimento desejante do mundo que figura, por contraposição à realidade presente, o que nós gostaríamos de ser ou ter sido. Nesse sentido, funda-se filosoficamente na contradição essencial entre “ser” e o “deve ser”. O que, no caso da arquitetura, aparece no contraste entre o valor-de-uso material e um edifício (o que ele é, o seu conteúdo funcional) – isto é, p seu “ser” –, e o seu valor-de-uso ideal (sua forma, sua idealidade projetiva) – o seu “dever-se”, sua condição artística.

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