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Abayomi: as histórias por trás da boneca de pano
06
abr
Abayomi vem do iorubá, um povo com raízes no sudoeste da África, onde, hoje, ficam a Nigéria e parte do Benin. Ela é a união de abay = encontro e omi = precioso, mas a palavra tem outros significados possíveis. Pode ser entendida como “aquele que traz felicidade ou alegria” ou “meu presente”. O nome remete a uma boneca preta de tecido, feita com nós que formam as mãos, os pés e a cabeça. Elas podem medir entre dois centímetros e um metro e meio e sua origem é muito discutida.
O passado distante das Abayomis
Muito se disseminou que as mulheres sequestradas no continente africano para serem escravizadas no Brasil rasgavam retalhos de suas roupas e confeccionavam pequenas bonecas nos porões dos tumbeiros, como eram chamados os navios que faziam o transporte entre os dois lugares. A razão de fazê-las, no entanto, não é um consenso.
Uma versão defende que as mães faziam os pequenos objetos para distrair seus filhos pequenos, que ficavam inquietos durante as longas viagens. Uma segunda narrativa diz que eram presentes aos filhos, de quem seriam separadas na chegada aos portos brasileiros. O tipo do tecido e da estampa indicavam a região de onde haviam saído, o que auxiliaria os filhos a encontrá-las novamente. Outra história conta que as bonecas serviam como amuleto de proteção durante as viagens e a nova vida do outro lado do oceano. Sua feitura não teria se limitado aos navios, continuando nas senzalas.
A ausência de marcações faciais – olhos, nariz e boca – teria a intenção de não privilegiar uma ou outra etnia, representando a coletividade dos povos que, sem distinção, eram escravizados pelos colonizadores. As Abayomis seriam, então, um símbolo da resiliência dos povos negros, de proteção e, acima de tudo, do amor de mãe.
A história, no entanto, não é bem assim. Não há qualquer registro histórico que associem as bonecas ao período colonial.
Uma versão mais recente
Em 1987, Lena Martins, artesã maranhense radicada no Rio de Janeiro, trabalhava como animadora cultural em um projeto no Centro Integrado de Educação Pública (CIEP) Luiz Carlos Prestes, na Cidade de Deus. À época, ela confeccionava bonecas de palha de milho e de algodão com retalhos de tecido. Movida pela aproximação com o movimento ecológico, ela intencionava a conscientização por meio do reaproveitamento de materiais que se tem em casa e das sobras de tecidos das fábricas e confecções.
Diversos outros movimentos sociais – o movimento negro e o feminismo – também conquistavam espaço. Às vésperas dos 100 anos da Abolição da Escravatura, uma marcha que paralisou a cidade era organizada e o 1o Encontro Nacional de Mulheres Negras, que aconteceu em Valença no ano seguinte, tomava forma. A arte educadora, tentando se entender negra e atuando junto à Secretaria de Cultura, acompanhava as discussões empreendidas ali e vivia intensamente todas as transformações. Como uma reação natural a essa atmosfera, seu trabalho foi tomando novas formas, mais atrelado às questões sociais.
Ela ministrava diversas oficinas de artesanato, que serviam de ponte entre a comunidade escolar e a comunidade externa. Antes de um desses eventos, produziu uma boneca amontoando retalhos de tecido e fazendo nós nas extremidades. Naquele dia, ensinou a técnica e, desde então, suas oficinas passaram a ter um tema: as bonecas sem cola e sem costura. O nome veio só depois. Ana Gomes, uma amiga do Movimento Negro que integrou os primeiros grupos de Abayomis, estava grávida e tinha duas opções para o bebê. Abebe, em homenagem ao primeiro negro africano a ganhar uma medalha de ouro em Jogos Olímpicos, e Abayomi, se fosse menina. Nasceu um menino, do qual Lena é madrinha. O nome feminino tornou-se, assim, o da boneca.
Ao longo dos anos, diversos grupos que trabalham na confecção das bonecas surgiram no Brasil e no exterior e elas adquiriram importância na luta contra o racismo. Sempre produzidas a partir de uma visão positiva, podendo encarnar diversas profissões – até presidente da república –, seus significados são o de reconhecimento de si e o de pertencimento, sobretudo para as crianças negras, que aprendem brincando que podem querer ser qualquer coisa.
A que serve a lenda em torno da boneca
Tanto para Lena, quanto para historiadores diaspóricos, atrelar as Abayomis ao período colonial e aos navios negreiros se deve ao racismo. O movimento de afastá-las do contexto contemporâneo serviria para diminuir o caráter positivo e ligar, conforme costuma ocorrer, a cultura e os indivíduos negros a uma ideia de passividade, a um ambiente ruim, a tudo que é negativo e degradante.
De outro lado, também romantiza os acontecimentos da diáspora africana, à medida que cria uma situação quase positiva para aqueles tempos. As estórias inventadas de mães que constroem brinquedos para seus filhos e filhos que se divertem a caminho de um novo mundo diminuem a culpa e mascaram a responsabilidade pelo que, de fato, aconteceu. O cenário, sabe- se, era de barbárie e as embarcações se chamavam tumbeiros não à toa. Milhões de homens, mulheres e crianças entraram a bordo, mas muitos nunca pisaram em terra firme novamente.
Por último, denota o racismo ainda encarnado em nossos dias. A perpetuação do mito que transforma um elemento da cultura em objeto de autoria desconhecida invisibiliza sua autora, uma mulher negra ainda viva que tem seu trabalho de uma vida inteira desconsiderado. Serve, também, para diminuir o poder simbólico de uma criação nascida em contexto de luta por direitos e que,
contra todas as adversidades, sobreviveu aos anos, ampliou seu alcance e chega a espaços mundo afora, contribuindo para mudanças de pensamento e de vivências.
ARTIGO ESCRITO POR ANTONIETA CAMPOS.