As máscaras são sempre simbólicas – um histórico sobre o que revelamos

Texto de Flávia Gasi*

Falar de máscaras como símbolos soa quase como um pleonasmo: a máscara é sempre simbólica. Ela representa algo para alguém, e pode ser lida mais corretamente por pessoas da mesma cultura. Assim, hoje em dia, quando você lê a palavra “máscara”, não deve se lembrar do carnaval (mesmo que tenha acontecido há pouco), mas da máscara que você fez ou comprou para se proteger e proteger aos outros da Covid-19. Na realidade, toda imagem funciona assim – a gente acessa em nós aquilo que está mais presente no momento, ou mais arraigado na cultura. Por vezes, essas duas coisas são apenas uma. Hoje em dia, contudo, não é o caso.

Por conta dessa natureza mutável, as máscaras são bem interessantes de serem estudadas. Elas desempenharam papéis totalmente diversos ao longo da história, e mesmo na hora de entender a raiz do termo, já vemos possibilidades bem diferentes. Máscara pode ter origem na palavra do latim antigo masca, que significa “espectro”, ou da árabe maskharah, sinônimo de “palhaço” e de “disfarce”. Entre o ocultamento, o sorriso, e a faceta da morte, as máscaras sempre tiveram presentes nas mais variadas culturas, sendo usadas por contadores de histórias, líderes religiosos, festeiros, artistas, entre outros.

A Máscara e o Animal Oculto

Na América do Sul, sabemos que muitos povos indígenas usavam máscaras em suas cerimônias, que simbolizavam animais, pássaros e insetos. Hoje temos pinturas rupestres do mundo tudo, que mostram caçadores mascarados também mimetizando animais. Acredita-se que essas máscaras serviam como catalisador para carregar o espírito metafórico dos animais.

Essa relação com os animais também pode ser vista na cultura dos esquimós do Alasca, que acreditavam que cada pessoa tinha uma vida dupla, uma seria o seu lado humano, conhecido pelos outros; é a outra parcela seria seu lado animal. Assim, eles tinham máscaras com faces duplas. Em algumas festas, o lado oculto era revelado.

Essa relação homem-natureza-animal é bem demonstrada em rituais xamânicos, e partem sempre de uma dialética de revelação-ocultamento, que parece condizente com esse ser duplo da cultura esquimó. A máscara não serve para ocultar apenas, serve para revelar algo que o corpo sozinho não pode fazer. A gente poderia falar a mesma coisa nas nossas roupas, cortes de cabelo, maquiagem, tatuagens. Todos esses acoplamentos a nós mesmos servem para mostrar algo que o corpo não podia mostrar sem eles. Eles são máscaras, que ocultam algo que não queremos (de uma olheira a uma pele nua), e que revelam muitas das nossas intimidades.

Podemos colocar aqui também a discussão de qual seria a máscara real: o corpo em que nascemos ou o corpo que apresentamos à sociedade. Quando um super-herói coloca uma máscara para proteger sua identidade secreta, ele revela quem verdadeiramente é (o super) ou oculta quem verdadeiramente é (a pessoa)? Assim, o disfarce é nossa verdade? Talvez sejamos exatamente a dialética entre essas duas coisas, como coloca Bachelard em seu texto “A Máscara”:

“Se o ser mascarado pode entrar de novo na vida, se quer assumir a vida de sua própria máscara, ele se confere facilmente a habilidade da mistificação. Acaba por acreditar que a outra pessoa toma sua máscara por um rosto. Crê simular ativamente após ter-se dissimulado facilmente. A máscara é, assim, uma síntese ingênua de dois contrários muitos próximos: a dissimulação e a simulação” (BACHELARD, 1986:165).

Máscaras e o Rítmo Coletivo

Os gregos antigos usavam máscaras em festas dionisíacas, regadas a dança, música, cantos, bebidas e orgias. As danças mascaradas não foram empregadas apenas na Europa, mas tiveram caráter ritualístico em diversos povos. No Brasil, o povo Tukuna evoca os espíritos em rituais de cura, com tambores, cantos e máscaras. Festas como bumba-meu-boi, cazumbá e o carnaval também trazem máscaras.

Mesmo quando o ritual a Dionísio foi proibido, sendo considerado pagão no Império Romano, as festas em Veneza traziam máscaras caras (até que foram proibidas pela polícia). O uso da máscara por coletivos, contudo, sempre esteve calcado na possibilidade de ser muitos. Nos teatros grego e japonês, o uso das máscaras no palco era quase como uma comunhão espiritual, que dava vida aos personagens, enquanto protegia os atores de serem imbuídos por maus espíritos.

Em seu livro “Filosofia Mestiça”, o filósofo Michel Serres mostra como Arlequim pode ser muitos em um, exatamente pelo uso da máscara. Podemos ver que, muitas vezes, as máscaras serão usadas com esse intuito – somos muito, somos legião – em obras que tratam de política, e mesmo na vida real. O personagem V, do quadrinho “V de Vingança”, de Alan Moore, não usa uma máscara apenas para se esconder como indivíduo, mas para poder ser muitos, ou todos. É uma amálgama de pessoas, em que a máscara para de revelar o oculto de uma pessoa, mas se torna uma voz que estava oculta por estar oprimida. Assim, faz muito sentido que esse conceito se espalhe em protestos políticos, como os chamados black blocs, manifestantes mascarados que usam suas máscaras para dar mais voz aos seus ideais do que seus individuais. A pesquisadora Rita de Cássia Fossaluza Ferreira comenta mais sobre isso em seu trabalho “Máscaras Como Símbolos De Comunicação E Expressão” – e você pode encontrar o link na bibliografia.

As máscaras que expressam ideais ou divindades (mesmo que sejam festeiras ou palhaças) nos lembram da multiplicidade da humanidade, e podem revelar nossos maiores desejos ou ideais. Gilbert Durand, em “Estruturas Antropológicas do Imaginário”, comenta que:

“(…) da cosmética ao teatro passando pela coreografia, a escultura das máscaras e a pintura. As máscaras ‘estão na vanguarda da defesa contra a morte’, depois laicizam-se e tornam-se suportes da emoção estética pura” (DURAND, 2002:405).

Máscaras Iniciáticas

Quando perdemos o contato com a cultura, também perdemos a valorização do uso da máscara. Por exemplo, as máscaras sempre fizeram parte da cultura africana, e imaginamos que elas fossem vistas como objetos místicos. Sua função era a de disfarçar a pessoa que usa, para que ela pudesse entrar em contato com os espíritos, absorver sua força, e usar em benefício da comunidade. Assim, as máscaras podiam ser vistas em todos os tipos de ritual: da cura ao casamento, da iniciação aos funerais. Algumas das culturas africanas as utilizavam para identificar membros de sociedades secretas.

Porém, não sabemos exatamente que máscara era usada para que e com qual finalidade. Quando os europeus chegaram à África, eles acharam que era tudo muito curioso, mas não tiveram muita vontade de entender, realmente. Apenas agora, os historiadores voltaram a estudar as máscaras que estão em museus.

Também na África, no Egito Antigo, havia uma valorização da morte expressa por máscaras. O processo de mumificação é como um mascaramento do corpo a ser sepultado, que podiam levar pedras precisas e outras riquezas, dependendo do status do morto. Esse tipo de valorização tem bastante a ver com a visão da máscara como espectro. Para Bachelard, um convite à morte pode significar apenas uma morte social. Ou seja, um convite para se conhecer:

“Somos seres profundos. Ocultamo-nos sob superfícies, sob aparências, sob máscaras, mas não somos ocultos apenas para os outros, somos ocultos para nós mesmos. (…) Entrar em nós mesmos não representa senão uma primeira etapa dessa meditação mergulhante. Percebemos que descer em nós mesmos implica um outro exame, uma outra meditação. Para esse exame, as imagens nos auxiliam. E muitas vezes acreditamos estar descrevendo apenas um mundo de imagens no exato momento em que descemos em nosso próprio mistério. Somos verticalmente isomorfos em relação às grandes imagens da profundidade.” (BACHELARD: 1990:259,260)

Ou seja, na dialética entre o que está oculto e o que está revelado, a máscara pode ser a interface, a síntese, entre esses dois contrários. Uma máscara iniciática é um convite para a sua intimidade. Neste momento pandêmico, certamente uma intimidade mais forçada e cheia de angústias (apesar de Bachelard colocar em “A terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade”, que toda intimidade vem com conflito e angústia). A máscara como símbolo de conexão entre o interno e externo nunca fez tanto sentido para mim como agora.

Para ler mais:

BACHELARD, Gaston. (1986) A Máscara. In:

_. O Direito de Sonhar. São Paulo:

Difel, 165-173 p

__. (1990) A terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade. São Paulo: Martins Fontes. [1948]

DURAND, Gilbert. (2002) Estruturas antropológicas do imaginário: introdução a arquetipologia geral. São Paulo: Martin Fontes, 2002.

FERREIRA, Rita de Cássia Fossaluza. 2016. Máscaras Como Símbolos De Comunicação e Expressão. Disponível neste link.

https://unisal.br/wp-content/uploads/2016/03/Disserta%C3%A7%C3%A3o_RITA-DE-CASSIA-FOSSALUZA.pdf

SERRES, Michel. (1993) Filosofia mestiça. Tradução de Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

*Jornalista e escritora com doutorado em Semiótica pela PUC-SP

** Texto publicado em 2 de maio de 2020 no site:

https://flaviagasi.blogosfera.uol.com.br/2020/05/02/as-mascaras-sao-sempre-simbolicas-um-historico-sobre-o-que-revelamos/